Patriarcado,
heteronormatividade e misoginia em debate: pontos e contrapontos para o combate
à homofobia nas escolas
Zulmira Newlands
Borges* Fátima C. V. Perurena**
Guilherme Rodrigues Passamani***
Muriel Bulsing****
Resumo: Este artigo
se propõe a analisar alguns conceitos centrais para o debate e a inclusão do
tema homofobia nas escolas. Para além de nossas experiências de pesquisa,
buscamos uma dimensão mais teórica na abordagem do assunto. Consideramos que,
antes mesmo de uma educação voltada para o respeito à homossexualidade e à
diversidade sexual, é necessário discutir com os professores as bases das discriminações
homofóbicas presentes na sociedade brasileira. Destacamos três pontos que
consideramos estratégicos para a discussão do tema: o patriarcado, a
heteronormatividade e a misoginia. Tomando como base esses três conceitos,
analisamos entrelaçamentos entre eles e a homofobia presente em nossa
sociedade.
Palavras-chave: Heteronormatividade,
Patriarcado, Misoginia, Homofobia, Escolas.
Abstract: The purpose of this article
is to analyze some central concepts to discuss and include the subject
homophobia in schools. Beyond our research experiences, we look for a more
theoretical dimension in dealing with the issue. We believe that, even before an education aimed
at respect to homosexuality and sexual diversity, it is necessary to discuss
with teachers the basis of homophobic prejudice prevailing in Brazilian
society. We highlight three points considered by us as strategic to deliberate
about the subject: patriarchy, misogyny and heteronormativity. Based on these
three concepts, we analyze interlacements between them and the homophobia
present in our society.
Keywords: Heteronormativity,
Patriarchy, Misogyny, Homophobia, Schools.
* Professora associada IV do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da UFSM, doutora em Antropologia Social (UFRGS) e pós-doutora em Educação (FACED/UFRGS). E- mail: zulmiraborges@gmail.com
** Professora associada II do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da UFSM, doutora em
Sociologia (PUC-SP) e pós-doutora em Sociologia. E-mail: perurena@terra.com.br
*** Professor
assistente II do curso de Ciências Sociais da UFMS – CPNV. Doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Campinas. E- mail: grpsociais@hotmail.com
**** Bacharel em
Ciências Sociais e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da UFSM.
Latitude,
Vol. 07, nº 1, pp. 61-76, 2013 61
Este artigo se enquadra nos processos de
reconhecimento de direitos específicos ligados à expressão e ao exercício da
sexualidade. Apresentaremos reflexões baseadas especialmente em nossas
pesquisas realizadas a partir da criação
do programa Brasil sem Homofobia (MEC/SECAD). O programa foi criado pelo
governo federal, em 2004, como “estratégia de mobilização e inclusão social e
educacional”. Nossas ponderações concentram-se especialmente na forma de
programar e discutir ideias de respeito à diversidade sexual e de combate à
homofobia no ambiente escolar. Chamaram-nos atenção as queixas das professoras
sobre a falta de suporte e orientação das secretarias de educação e das
direções das escolas para a discussão de gênero e sexualidade. Quando ocorre, a
única dimensão possível de abordagem do
tema da sexualidade na escola é a biológica, tratando exclusivamente os problemas relativos à sexualidade. O tema da sexualidade, como uma dimensão da
saúde humana e como um direito que deve
ser usufruído com prazer, respeito e responsabilidade, é raramente
discutido. O assunto da homossexualidade é praticamente inexistente, e o
preconceito é fortalecido pela invisibilidade. Há escolas e professoras do
interior do Rio Grande do Sul que chegam a afirmar que ali não existe esse tipo
de problema, claramente demonstrando a invisibilidade, o
preconceito e a homofobia que existe em todo o país. Aliado à falta de material
didático, o medo de incitar ou estimular
a sexualidade ainda
persiste. As professoras que abordam o tema na área de humanas sofrem pela falta de amparo e pelo
preconceito dos alunos. Por isso, argumentamos ao longo deste artigo que é
necessário refletir sobre os entrelaçamentos da homofobia com a
heteronormatividade, o patriarcado e a misoginia. Acreditamos que a homofobia é
tanto mais forte, disseminada e persistente quanto mais inquestionável for a heteronormatividade, o patriarcado
e a misoginia.
O objetivo
deste artigo é conduzir a discussão para elementos anteriores ao surgimento do
conceito de homofobia, mas que dão base e possibilitam a sua construção.
Dissecando e escrutinando os conceitos de patriarcado, heteronormatividade e
misoginia, analisamos os entrelaçamentos dessas estruturas de pensamento
presentes em nossa sociedade. Em seguida, exploramos caminhos possíveis para
discutirmos a heteronormatividade nas escolas. Considera-se a escola como um
espaço de práticas sociais imerso em relações de poder. Casos de discriminação
e de intolerância foram relatados constantemente em nossas pesquisas anteriores.
Propomos discutir alguns pontos e contrapontos para o debate da homofobia nas escolas.
Apontaremos,
aqui, pelo menos dois pontos que são constantemente referidos nas pesquisas e
que serão abordados ao longo do texto. O primeiro deles é a falta de apoio da comunidade escolar,
indicada pelas professoras, já que existe um medo de incitar e estimular a
sexualidade na escola. Por isso, quando esta é colocada em pauta nas salas de
aula, é sempre a partir dos prismas dos problemas de saúde, risco de aids, DST e
gravidez na adolescência. De fato, a sexualidade é um dos aspectos da vida e da
saúde, e não há risco de incitar ou estimular mais do que ela já o é pela mídia
e pelos meios de comunicação, pelas músicas que as crianças cantam e por tudo
que elas assistem nas ruas, nos parques, nas praças sobre a tal sexualidade que
não pode ser estimulada na escola.
Aprende-se sobre
gênero e sexualidade em todos
os espaços e em todos os momentos. Ensina-se, direta ou indiretamente, pelo
olhar, pelo silenciamento, pelos sorrisos e pelas repreensões ou advertências.
Mas é preciso ainda colocar em pauta e como tema transversal nas escolas a
questão da sexualidade como um direito, que deve ser usufruído com
responsabilidade e com respeito, por si e pelo/a pretendente ou parceiro/a. O
que queremos argumentar é que é possível ensinar sobre sexualidade em um
contexto de construção de cidadania e de direitos humanos e não apenas de sexo
e de doenças. Por isso, consideramos fundamental discutir sobre patriarcado,
misoginia e heteronormatividade antes de falar em homofobia.
Outro ponto
constantemente referido são as dificuldades de tratar o tema da sexualidade pela falta de material
didático. Acreditamos que a música, a literatura brasileira, as piadas, as
crônicas e as poesias, os desenhos infantis, o cinema, enfim, tudo pode se
tornar material didático para iniciar a discussão sobre sexualidade. A questão
não é exatamente o material didático e, sim, o argumento central que deve
orientar a discussão sobre o tema na sala de aula. Alegamos que é preciso
questionar as bases do pensamento. Questões muito profundas, históricas e
arraigadas devem ser repensadas. Para isso, talvez não seja necessário produzir
um material específico sobre o assunto sexualidade, ou homofobia, ou
homossexualidade, ou bissexualidade, mas partir do pressuposto de que é
necessário olhar para a nossa lógica heteronormativa e colocá-la em discussão e
relativizar essa lógica através da história e da antropologia. Também é preciso
olhar para as bases do patriarcado e da misoginia. A escola deve construir
cidadãos que se respeitam e que conseguem viver em sociedade, sabendo
que cada indivíduo tem os mesmos direitos que o outro.
Primeiras discussões – Gênero e
patriarcado
Para
iniciar nossa discussão, destacamos a tese de Heleieth Safiotti (2004, 2008),
para quem os humanos nascem marcados por três grandes subestruturas sociais – classe, etnia e gênero
–, e a elas não há quem fuja. Nesse sentido, para fins
de análise, isolamos apenas uma dessas três categorias (o gênero), mas
compreendemos que os humanos, seres sociais que são, sempre serão uma
totalidade multifacetada em que classe, etnia e gênero se mesclam de tal forma
que é praticamente impossível ignorar um ou outro. Daremos precedência às
questões de gênero pelo fato de a temática proposta estar mais diretamente
ligada a ele, mas também tendo como pano de fundo, a compor aquela totalidade,
a classe e a etnia.
Embora o
conceito de gênero apresente um caráter polissêmico, não se pode negar que hoje
há certo consenso (o único) no que se refere ao fato de ele ser um construto
social, ou seja, é a construção social do masculino e do feminino. E isso se
deve a determinadas discussões que foram travadas por muitas correntes teóricas
feministas na tentativa de desnaturalizar as desigualdades entre homens e
mulheres. Assim, inicialmente, e até mesmo para marcar um posicionamento
político (sempre lembrando a máxima de que “o pessoal é político”), fazemos
questão de enfatizar o caráter eminentemente social do gênero, na tentativa de
negar essencialismos naturalizantes.
Aqui no
Brasil, o artigo de Joan Scott (1990) fez história, e ainda é referência, como
um dos mais significativos textos advogando a causa da relação umbilical entre
gênero e construção social. Por outro lado, do ponto de vista
metodológico/epistemológico, não se pode, também, cair no construcionismo
radical. Não há como, querendo cair fora do cartesianismo dualista, entender
gênero apenas através do olhar do social.
Assim, concordamos com Saffioti:
O gênero, socialmente
construído, se articula ao sexo, situado na esfera ontológica orgânica. O
pensamento cartesiano separou radicalmente o corpo da psique, a emoção da
razão, gerando verdadeiro impasse. Efetivamente, se a cultura dispõe de uma
enorme capacidade para modelar o corpo, este último é o próprio veículo da
transmissão do acervo cultural acumulado ou, mais simplesmente, das tradições.
(2008, p. 154).
Mesmo
reconhecendo o enorme serviço que o conceito de gênero prestou, e presta, às
discussões feministas – principalmente hoje –, não se pode dar conta de
problemática tão complexa apenas com o seu uso. Nesse sentido, entende-se
[...] a história como processo,
admitindo a utilização do conceito de GÊNERO para toda a
história, como categoria geral, e o conceito de PATRIARCADO
como categoria específica de determinado
período, ou seja, para os seis ou sete milênios mais
recentes da história da humanidade. (SAFFIOTI, 2004, p. 45).
Evidentemente
que aqui não estamos nos referindo à Idade Antiga quando, por exemplo, o
patriarca detinha o poder de vida e morte sobre
sua mulher e filhos. Com efeito,
o patriarcado, sendo ele mesmo a própria sociedade, transformou-se. Os direitos
humanos avançaram sobremaneira, no entanto basta ler/ver o noticiário para
observar o quanto, de fato, o patriarcado vigora – homens continuam matando
suas companheiras, violentando-as de todas as maneiras, deixando-as vivas, mas
muitas vezes tetraplégicas, sem falar nos males
psicológicos de toda ordem deixados não só pela violência física
propriamente dita como também pela violência
psicológica.
De outra
forma, como explicar o abuso/estupro quando se sabe que em torno de 71% das
meninas violentadas sexualmente o são pelos seus próprios pais biológicos ou
por homens pertencentes à família da vítima? No Brasil, são homens que estão na
direção de veículos automotivos que causam morte – a eles próprios e aos
ocupantes de outros veículos, e cuja hipótese principal, em termos de relações
de gênero, está no patriarcado (PERURENA; SANDALOWSKI; MAIA, 2011). Também a
homofobia, tema deste trabalho, tem no patriarcado uma de suas origens. Não se tem notícia de mulheres agredindo
gays, coletiva ou
individualmente. Por outro
lado, os exemplos de agressões de homens sobre as mulheres e de homens para com
outros homens seriam infindáveis.
Rigorosamente,
o que as feministas pretendiam, na década de 1970, era denunciar a dominação
sofrida pelas mulheres e exercida pelos homens, em uma proposta eminentemente
política, mas que deixava margem para questionamentos teóricos. Patriarcado era
um conceito vinculado ao método weberiano, que por sua vez compreendia aquele
ancorado na economia doméstica, separando-o do Estado. O entendimento aqui
adotado não compartilha da proposta teórica weberiana, mas compreende que o
político, o econômico e o social são uma coisa só – a sociedade na sua
totalidade, sem estilhaçamentos.
É
importante esclarecer – visto que normalmente os exemplos do que é o
patriarcado estão afeitos à esfera doméstica – que o contrato sexual faz parte
do contrato social. Segundo alguns teóricos, sendo o patriarcado apenas
ideologia, ele não se remete ao mundo público. Não há como negar a prevalência
de atividades privadas ou íntimas na esfera da família, mas o Estado é quem as
normatiza, ou seja, contrato social e contrato sexual, pode-se dizer, são a
mesma coisa, um informando o outro. Novamente, público e privado mesclam-se,
sendo impossível entender um sem o outro.
Carole
Pateman (1993) esclareceu essa questão, pondo fim à ideia de que a modernidade,
ao instituir o Estado liberal, acabou com o patriarcado, como queria Locke.
Para essa autora, paralelamente ao contrato social, instituiu-se o contrato
sexual, passando a vigorar, então, o “direito patriarcal moderno”, legitimando
o direito sexual do acesso masculino aos corpos femininos. Muito contribuiu
para a lógica do patriarcado a crescente valorização e a institucionalização da
monogamia como valor fundamentado em grande parte na Igreja Católica e na
valorização da família composta por pai, mãe e filhos. O fundamento monogâmico
garantiu também a consolidação da propriedade privada e a transmissão de bens de
pai para filhos.
A título de
esclarecimento, aqui se entende o conceito de patriarcado da forma em que o
formulou Allan Johnson (1997, p. 4-5):
[...] patriarcado não é
simplesmente outra maneira de dizer ‘homens’. Patriarcado é um tipo de
sociedade, e uma sociedade é mais que um conjunto de pessoas... Uma sociedade é patriarcal na
medida em que é dominada por machos, identificada com machos e centrada nos machos.
É preciso ver a quem serve manter apenas o uso do
conceito de gênero, e pensar se este, não sendo neutro (porque em ciência nada
é neutro), é bem menos neutro que o conceito de patriarcado. Insistindo-se
apenas no uso daquele, esconde-se o que verdadeiramente está por trás – a máquina patriarcal bem azeitada, operando sem parar, ao estilo de tempos
modernos, tão bem exposto
por Charles Chaplin.
Pelo
exposto até agora, propomos que os conceitos de gênero e patriarcado sejam
utilizados simultaneamente, posto que o primeiro é bem mais abrangente
que
o segundo, dando conta de cobrir toda a história da humanidade. O patriarcado, segundo Gerda Lerner (1986) e
Allan Johnson (1997), tem datação histórica, cobrindo os últimos seis ou sete
milênios da história dos humanos no planeta. Com efeito, o conceito analítico gênero permite que se advogue o fim ou a diminuição das desigualdades entre
machos e fêmeas. O conceito de patriarcado mostra o quanto ainda se pode
ver/lutar contra a dominação/exploração de mulheres por homens. Assim,
concordando com Saffioti, o conceito de patriarcado não tem a pretensão
[...] da generalidade nem da
neutralidade, e deixando, propositadamente explícito, o vetor da dominação-
exploração. Perde-se em extensão, porém, se ganha em compreensão. Entra-se,
assim, no reino da História. Trata-se, pois, da falocracia, do androcentrismo,
da primazia masculina. É, por conseguinte, um conceito de ordem política. E
poderia ser de outra ordem se o objetivo
das(os) feministas consiste em transformar a sociedade, eliminando as
desigualdades, as injustiças, as iniquidades, e instaurando a igualdade?
(SAFFIOTI, 2008, p. 177).
Os
desdobramentos do patriarcado perpassam diferentes períodos históricos e ganham novas roupagens que se
adaptam aos diferentes tempos. Se pensarmos a sociedade contemporânea, não é
difícil perceber os traços patriarcais travestidos de misoginia1 e heteronormatividade. Os valores que
constroem o pensamento misógino e heteronormativo estão assentes em
pressupostos patriarcais, sobretudo no que diz respeito à subjugação do outro a
uma condição não apenas manifesta, mas também latente de inferioridade,
desprezo e humilhação.
Heteronormatividade
e homofobia
Desde as
principiantes discussões de gênero até o aporte encorpado da teoria queer,
é fundamental a contribuição do movimento feminista, o qual é importante
inclusive para pensar a homofobia. Aprofundando o debate feminista, a teoria queer, nas palavras
de Richard Miskolci
(2009), entende a sexualidade como um dispositivo de poder. Esse poder é
historicamente estabelecido por meio de diversos discursos e diferentes
práticas sociais.
1 A misoginia é um aspecto central
da violência contra as mulheres e da violência homofóbica. Ela se manifesta em
várias formas diferentes de piadas, pornografia e violência. Até os padrões
excessivos e inalcançáveis de beleza podem ser enquadrados como um aspecto da
misoginia da nossa cultura ocidental moderna. Em resumo, a misoginia está
relacionada à desvalorização do feminino e, em sua versão mais radical, ao ódio
ou desprezo ao feminino.
Assim, as
noções de certo e errado, em termos de gênero, sexualidade e orientação sexual,
são atributos estabelecidos pelos valores culturalmente construídos; valores
estes que seguem uma orientação. No mais das vezes, tal orientação fala de um
lugar de poder, um lugar que é social, político, filosófico e religioso.
Esse lugar
que estabelece as normas e as dispõe como destinos manifestos, no caso da
sociedade ocidental, construiu aquilo que se convenciona chamar de
heteronormatividade, ou seja, torna os valores associados à heterossexualidade
como os pressupostos que regram a sociedade e devem ser compulsórios aos
indivíduos.
Miskolci (2009) mostra, em
outras palavras, que a heterossexualidade é encarada pela sociedade ocidental,
em grande medida cristã, como algo natural. Assim, desdobra-se dela todo um rol
de expectativas e desejos, justamente, nas palavras do autor, porque
ela seria o fundamento da sociedade (MISKOLCI, 2009, p.
156).
Como
destacado por Michel Foucault (2005), a nossa sociedade assenta-se na
necessidade de formar e disciplinar os sujeitos a fim de que sejam
heterossexuais e difundam os valores associados à heterossexualidade. Em
tempo, é preciso que fique claro que a heteronormatividade
abarca a sociedade como um todo, portanto todos estão sujeitos aos seus
pressupostos, pois ela é uma categoria que estrutura e fundamenta a dinâmica social.
A realidade
que se tem hoje é devedora, em grande medida, de uma sequência de acontecimentos
patologizantes e medicalizantes, a rigor, assentados no século XIX. Foi na
segunda metade desse século que houve uma atenção para os fenômenos da
sexualidade, em que se instauraram mecanismos que estabelecem as verdades sobre
o sexo e, igualmente, começaram a nomear os sujeitos sexualizados. Nasceu aí, por exemplo, o
homossexual. A heterossexualidade tornou-se a única possibilidade saudável de
viver e experienciar a sexualidade. E, segundo Guacira Lopes Louro (2009), o
corpo passou a ser compreendido como a causa e a justificativa das diferenças.
Diferenças que confundiam e relacionavam, de forma causal e interdependente,
sexo, gênero e sexualidade.
As práticas
sexuais entre pessoas do mesmo sexo são recorrentes na história, desde a
antiguidade, ou desde que existem registros históricos. No
entanto tais práticas não mereciam qualquer atenção, pois eram apenas
formas de experimentação do prazer e da sexualidade. Não existia um sujeito
homossexual. Esse sujeito, como lembra Foucault
(2005), é do século XIX.
O homossexual, então, a partir
do surgimento de uma scientia sexualis, não
era mais um pecador, um doente
ou um criminoso. Ele era outro ser, outra espécie de indivíduo. Sobre ele
recaiu toda a gama de desconfiança possível, em grande medida, motivada pela
necessidade de fortalecer a norma, heterossexual, cujas práticas não deveriam
ser tão institucionalizadas assim, tendo em vista que é desnecessário convencer
a população sobre o que já é consenso. Nesse processo de normatização da
sexualidade, construiu-se uma série de juízos morais sobre o homossexual como
uma figura maléfica, marginal e passível de perverter a ordem social.
Louro (2009) produz uma reflexão interessante nesse
sentido. Ainda que o homossexual e a homossexualidade sejam razão de escárnio,
essas categorias se tornam imprescindíveis para justificar e normatizar a
heterossexualidade. Ou seja, a
heterossexualidade só tem sentido em função da homossexualidade. São categorias
interdependentes. Mas, segundo a teoria queer, elas não esgotam as possibilidades de
expressão da sexualidade. Como dito acima, não há heteronormatividade dada. Ela
se constrói e se reconstrói todos os dias. O que tem se observado no presente
século é uma reorientação da compreensão da heteronormatividade, isto é, seus
contornos que antes se preocupavam em resguardar a heterossexualidade dos perigosos diferentes – em termos de normalidade ou patologia e,
portanto, no âmbito da saúde – agora começam
a, além disso, reforçar um discurso de ódio e de violência sobre essas
categorias, especialmente para com o segmento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais
e transgêneros). Esse sentimento, traduzido em ações concretas, é comumente
chamado de homofobia.
O vocábulo homofobia afere uma hostilidade aos homossexuais.
Desde um ponto de vista homofóbico, os homossexuais necessitam ser
estabelecidos como dissidentes em relação à ordem estabelecida; leia-se à ordem
heterossexual. Figuram nesse cenário como inferiores e anormais (BORRILLO,
2010). Estamos diante de um conceito bastante jovem. O termo homofobia data dos
anos 1970. Segundo Daniel Borrillo (2010), a palavra foi cunhada por K. T.
Smith em 1971. Smith fazia uma pesquisa na qual tentava compreender a
personalidade daqueles que discriminavam homossexuais, e homofobia aparece no artigo resultante dessa pesquisa. Um ano depois, em 1972, G.
Weinberg foi quem definiu homofobia com mais clareza, pela primeira vez. Para
ele, essa palavra denotava “o receio de estar com um homossexual em um espaço
fechado e, relativamente aos próprios homossexuais, o ódio por si mesmo”
(BORRILLO, 2010, p. 21).
Daniel
Borrillo (2010), em seu livro – já clássico, embora muito recente –, demonstra
como a homofobia é um tipo específico de preconceito/sentimento/prática gestado
e resultante de um conjunto de emoções, condutas e ideologias cujo princípio
norteador é a construção de uma ética moral que despreze os homossexuais. A
criação dos homossexuais como figuras dissidentes, destoantes ou diferentes é
produto de um discurso heteronormativo
que se encarrega de estabelecer hierarquias, não apenas no mundo nos
desejos, mas, sobretudo, no mundo da moral, da religião e, por que não, da política.
Nesse sentido,
o caso brasileiro é bastante
emblemático. A população LGBT ainda se vê excluída de uma série de direitos vistos,
inclusive, como universais. Há uma gama de direitos ainda negados aos
homossexuais brasileiros que os colocam em situação de completa vulnerabilidade
social. O Estado brasileiro, dessa forma, infringindo a própria laicidade
conquistada constitucionalmente,
afronta os direitos humanos ao
considerar os homossexuais como cidadãos de segunda categoria, algumas vezes
motivado por crenças religiosas específicas de determinadas igrejas (RIOS, 2002).
Como bem
pontua Daniel Borrillo (2010), ao problematizar o caso francês em relação à
legislação pró-LGBT, as leis a favor da população LGBT são sempre leis de
exceção, isto é, trata-se de casos particulares, especiais. Não há um avanço
efetivo rumo à equidade. Essas
reivindicações por equidade acabam esbarrando na tradição, na religião
(difusora de uma moral social) e nos costumes. Logo, quando existem, os avanços
são lentos.
Na prática,
no Brasil de hoje, para ter o seu direito de cidadão respeitado, em termos de
saúde, estado civil e constituição de família através da adoção, os casais
homossexuais precisam lutar judicialmente por ele. A constituição afirma a
igualdade, mas os valores e a prática social demonstram uma realidade baseada em valores homofóbicos. É preciso repensar
tudo isso desde cedo, e o melhor lugar para proporcionar uma mudança, em médio
prazo, ainda é a escola.
Se aos
heterossexuais a sexualidade é só mais uma dimensão de sua complexa teia
identitária, aos homossexuais ela acaba tornando-se a sua referência, não
apenas para compreender ou explicar os seus desejos, mas para justificar a sua
condição de uma cidadania pela metade, ou de uma subcidadania. As sexualidades
não referendadas pela heteronormatividade são encaradas como um desvio da
norma, portanto passíveis de não terem qualquer respaldo legal, social e até
humano (PASSAMANI; MAIA, 2011).
As questões
que se apresentam a serem resolvidas são complexas e exigem comprometimento de
diferentes instâncias da sociedade. Há poucos anos as mulheres, os negros e os
indígenas eram marcados pela diferença e exclusão. Essas pautas recentemente
dão sinais de mudança. No entanto, aos homossexuais, ainda continuam a existir
barreiras que os impedem de desfrutar da cidadania plena. Uma nova ética, mais plural e humanista, passa
necessariamente por discutir as bases do processo de ensino-aprendizagem. Por
isso, tais questões, necessariamente, devem estar nas salas de aula, sendo
debatidas de maneira séria, oxigenada e laica.
Homossexualidade, misoginia e
homofobia
Homossexualidade,
misoginia e homofobia são aspectos fortemente entrelaçados e constituídos
historicamente. Embora seja impossível estabelecer uma hierarquia entre eles,
para fins deste artigo consideramos que a misoginia precede a visão
contemporânea da homossexualidade e constitui-se enquanto um dos pilares da
homofobia. A estratégia de desvalorização das mulheres e o esforço em
subjugá-las e mantê-las longe das esferas de decisão perpassou inúmeras
culturas e governos. Segundo Scott (1993, p. 25):
A ligação entre os regimes
autoritários e o controle das mulheres tem sido observada, mas não foi estudada
com profundidade. Seja num momento crítico para a hegemonia jacobina durante a
Revolução Francesa, seja na hora em que Stálin apoderou-se da autoridade de
controle, ou na época da implementação da política nazista na Alemanha, ou
ainda no triunfo do Aiatolá Khomeiny no Irã, em todas essas circunstâncias, os
dirigentes emergentes legitimavam a dominação, a força,
a autoridade central e o poder
soberano identificando-os ao masculino (os inimigos, os “outsiders”, os
subversivos e a fraqueza eram identificados ao feminino), e traduziam literalmente esse código em leis (proibindo sua participação na vida política,
tornando o aborto ilegal, proibindo o
trabalho assalariado das mães, impondo códigos de vestuário a mulheres) que colocavam as mulheres em seu lugar. Essas
ações e a época de sua realização têm pouco sentido em si mesmas. Na maioria dos
casos, o Estado não tinha nada de imediato ou nada de material a ganhar com o
controle das mulheres. Essas ações só
podem adquirir sentido se elas são integradas a uma análise da construção e da
consolidação do poder. Uma afirmação de controle ou de força tomou a forma de
uma política sobre as mulheres.
Partindo de
Scott (1993), argumentamos que há historicamente a identificação do masculino
com qualidades e aspectos positivos e superiores, ao mesmo tempo em que o
feminino é visto como perigoso, subversivo e fraco. A nosso ver, misoginia e
patriarcado são dois conceitos interdependentes, sendo impossível a sobrevida
de um sem a presença do outro. O patriarcado, enquanto estrutura de pensamento,
só pode existir difundindo a misoginia que lhe dará respaldo e legitimidade.
Para alguns, a “homofobia é similar à misoginia, pelo menos no que diz respeito
aos homens sexualmente passivos ou que apresentam um comportamento feminino,
independente de suas preferências sexuais, da
mesma forma que as mulheres que apresentam um
comportamento masculinizado” (TORRÃO FILHO, 2005, p. 147).
Algumas
pesquisas sobre homofobia nas escolas demonstraram que a violência homofóbica é
proporcional à transgressão de gênero:
Se
podemos tomar as culturas de gênero como potecializadoras de vulnerabilidade é
importante pensar que existe uma hierarquia de valores dentro da própria
homofobia que é capaz de ser mais ou menos violenta conforme a transgressão ao
comportamento de gênero que é socialmente esperado. Nesse momento, parece ser
mais aceitável um casal homossexual, seja feminino ou masculino, se ambos os
parceiros comportam-se dentro das expectativas de gênero do seu sexo, compondo
casais de homens másculos e mulheres femininas e, principalmente, sem
manifestações de afeto em público. Nesse sentido, a homofobia no Brasil recebe
um reforço cultural que é a desvalorização de tudo que é feminino ou coisa de mulher. Os homens que se aproximam de um
comportamento socialmente identificado como feminino serão fortemente vigiados,
discriminados e, certamente,
sofrerão vários tipos de penalidades na escola. (BORGES; MEYER, 2008, p. 66).
As
pesquisas demonstram que o crime maior, para a sociedade brasileira, não é
exatamente ser homossexual ou bissexual. Há imensa diversidade de práticas
sexuais socialmente aceitas, e a criatividade humana é inesgotável nesse campo.
O problema, de fato, se coloca no campo das disputas de significados e regras
culturais socialmente aceitas e dos valores e crenças morais historicamente
constituídos. Há – para os homofóbicos – uma traição aos valores culturais e às
regras estruturantes do pensamento quando uma criança de sexo masculino se
identifica com uma performance de gênero feminino. No exemplo a seguir, vemos
uma situação de violência simbólica que ilustra muito bem a desvalorização do
feminino e das tarefas femininas, sendo vistas com tal grau de desqualificação
que podem ser usadas como uma punição para a criança que ousa transgredir a
norma que impõe um destino e uma performance masculinas a um corpo com aparato
biológico masculino. No artigo de Borges e Meyer (2008, p. 70), vemos relato
exemplar dessa situação misógina e homofóbica:
Uma professora relatou o caso
de um aluno seu que sofria fortes
discriminações e vigilância da mãe e das professoras, pois aos sete anos
gostava de se maquiar e usar roupas femininas e, embora os colegas não o
descriminassem em função disso, a família e as professoras o repreendiam
constantemente. Segundo o relato da professora, “a mãe repreende e ao mesmo tempo incita o filho de outras formas,
por exemplo: se tu quer ser bicha, então tu vai lavar a louça e lavar o chão e
arrumar casa, porque isso é serviço de mulher. E como aqui só tem uma bicha, tu
é que vai fazer.” Esta situação familiar descrita pela professora é bem
representativa de uma mistura, bastante comum, entre homofobia e misoginia em
que, na hierarquia de valores da sociedade brasileira, um homossexual que não
transgrida a relação entre sexo e gênero e se comporte como um homem masculino
ou uma mulher feminina é mais aceito do que um homem com características femininas
ou uma mulher com aparência masculina. (BORGES; MEYER, 2008, p. 70).
Nesse relato,
a mãe obriga o filho
– que, segundo ela, “quer
ser bicha” – aos
serviços domésticos, como se isso fosse uma terrível punição, rebaixando-o na
escala social a ocupar tarefas subalternas, como se o fato de a criança se
aproximar do imaginário do que vem a ser um comportamento feminino o destinasse
a uma
inferioridade social. Torrão Filho (2005)
aponta como é fortemente discriminada em nossa cultura a não continuidade entre
sexo e gênero. Onde o feminino é a grande ameaça à heterossexualidade do homem,
há um rebaixamento social, pois, ao escolher a feminização, o homossexual ultraja e
desrespeita sua natureza e a outros homens. O mesmo ocorre com a masculinidade,
que é interdita às mulheres:
De um lado, o feminino é a
grande ameaça à heterossexualidade do homem; cada época define a categoria do
risco, mas o feminino é sempre a ameaça ao homem. Por outro, a masculinidade é
interdita à mulher, pois a mulher no lugar do homem é o “mundo às avessas”, a
ordem corrompida, a natureza ultrajada. Portanto, homens homossexuais rebaixam
seu sexo escolhendo estar abaixo de outros homens; e as mulheres lésbicas, por
sua vez, usurpam um poder que não lhes pertence, e ao qual sequer podem usar,
já que são desprovidas dos meios da
consumação da masculinidade. (TORRÃO
FILHO, 2005, p. 143)
Sendo
assim, consideramos que patriarcado, heteronormatividade e misoginia são
conceitos que se constituíram ao longo da nossa civilização judaico- cristã e
que precisam ser analisados, dissecados, escrutinados e relativizados por
aqueles que irão formar os cidadãos de amanhã. É necessário dar-se conta de que
não se pode continuar vivendo a partir de uma lógica e de valores socialmente
ultrapassados. É preciso enfrentar a questão, refletindo sobre sua
historicidade e contextualização e que, portanto, pode ser alterada e
atualizada a partir de novos padrões de pensamento de uma sociedade menos
agressiva, menos violenta, mais tolerante, mais democrática, inclusiva e menos
homofóbica. A violência contra as mulheres e contra os homossexuais tem
recebido maior visibilidade, pois tem ocorrido maior mobilização política e
maior luta por direitos, tanto por parte das mulheres quanto dos homossexuais.
Mas as bases que constituem essas violências são as mesmas, ou seja, a
heteronormatividade, o patriarcado e a misoginia, que precisam ser estudados e
combatidos. A escola pode e deve ser um local para se ensinar solidariedade,
inclusão, democracia e cidadania.
Possibilidades de discutir a
problemática da homofobia nas escolas
Abordar
questões sobre gênero, sexualidade e homofobia, de uma forma geral, já é
difícil por si só. Nas escolas torna-se tarefa ainda mais árdua, dada a
crescente interferência da moral religiosa, especialmente de alguns setores
mais radicais das igrejas neopentecostais. Propomos o uso da arte, da
literatura e do cinema para discutir esses temas com professores e alunos. O
foco desses filmes, textos e livros deve sempre ser outras possibilidades de
arranjos familiares e de vivências saudáveis e respeitosas da sexualidade
humana. Busca-se enfatizar a ideia de saúde sexual não como enquadramento
em uma
heteronormatividade, mas como a possibilidade de exercer com
responsabilidade, respeito, maturidade e
prazer a sua vida sexual. A
alternativa que consideramos mais rápida e eficaz é justamente a proposta de
realizar ciclos de cinema que abordem essas temáticas. A possibilidade de
elencar tais questões em ciclos de cinema pode viabilizar a discussão desses temas
ludicamente, de modo sério e democrático, desconstruindo tabus e
silenciamentos.
Segundo
Portes (2011, p. 1659), a utilização do cinema como arcabouço teórico e
metodológico é ferramenta que se utiliza de conceitos provenientes da História
Cultural como, por exemplo, os de apropriação e representação de Chartier para tecer análise tanto de imagens
e de linguagem cinematográfica quanto da
própria historiografia. Tal como Chartier, entendemos que o aprendizado mediado pelas representações
cinematográficas auxilia na identificação objetiva de diferentes representações
que, por sua vez, dão-se em diferentes lugares e momentos de uma determinada
realidade social e que, portanto, é
construída, pensada e acionada.
A linguagem cinematográfica, ao dar-se ênfase às representações e
relações sociais que constroem identidades de gênero, levando-se em conta
contextos inter- relacionados como os de relações de poder, etnia, sexualidade
e religião, possibilita uma acentuada visibilidade à complexidade na qual os
indivíduos estão inseridos em seus mais diversos momentos de vivência e
experiência. De Oscar Wilde – ainda no século XIX, que já dizia que “a vida
imita a arte muito mais do que a arte imita a vida” – a Robert Rosenstone
(1997, p. 22) – que nos diz que as imagens são capazes de mudar as regras do
próprio jogo histórico –, vemos que atualmente a ferramenta cinematográfica tem
a potencialidade de ser mais complexa que o próprio texto escrito, devido à
grande interação de fenômenos e dimensões nela expostos.
As relações
entre cinema e educação nos permitem outro viés teórico e outra abordagem metodológica,
evidenciando novos aspectos dos processos sociais que presidem essa interação.
Assim, a discussão a partir do cinema aproxima a comunidade de situações,
histórias de vida, sofrimentos e experiências que comovem e afetam as pessoas.
Essa aproximação com outra realidade e outros modos de vida que o cinema
propicia é potencialmente transformadora por possibilitar a desconstrução de
estereótipos e pré-conceitos que devem ser analisados e debatidos nas discussões com especialistas após a exibição
do filme.
A
experiência com o uso do cinema (inserem-se aí os documentários) evidencia o
potencial transformador de novas ferramentas educacionais advindas do meio
virtual. “Foi assim que os irmãos Lumière realizaram as primeiras tomadas:
cenas que testemunhavam a saída de trabalhadores da usina.” (PORTES, 2011, p.
1660). O cinema vem sendo utilizado incisivamente como fonte para além do
entretenimento mais ou menos desde a década de 1970, pois foi a partir daí que
se evidenciou sua capacidade de transgredir pontos e consensos que a sociedade
tinha como fixos.
O cinema obriga o espectador
a entrar em contato com outra realidade que, por mais fantasiosa que se pareça,
poderia ser real – e a verossimilhança por si só tem
grande potencial de afetar e comover. Além disso, o cinema propicia um tipo de
aproximação entre realidades tão distintas e distantes socialmente que, se
deixadas ao acaso, seria impossível acontecer, dada a marginalização e a
exclusão de alguns
grupos
sociais. Os temas em ascensão mudam de época para época, mas a inserção do
espectador na imagem (som, história, romance etc.) que se desenrola na tela não
mudou dramaticamente. Ao contrário, com as novas tecnologias – como o cinema 3D
–, cria-se um redimensionamento daquilo que é real e do que é mera criação,
mesmo que essa criação seja uma recriação
ipsis litteris
de uma realidade que não se mostra palpável naquele momento, mas
inteiramente sensível.
Discutindo o
conceito de homofobia, percebemos que, de um modo geral, refere-se à
intolerância gerada pela discriminação contra pessoas que possuem uma orientação afetiva
e/ou sexual que se diferencia das opções tidas como comuns
– muitas vezes, esse termo
comum sendo análogo ao que seria considerado saudável, esperado, respeitado
etc. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, lê-se
explicitamente (art. 3º, inciso IV) que é dever e direito do Estado e de cada
cidadão promover o bem de todos, indistintamente, sem incorrer com qualquer
forma de preconceitos, seja de origem racial, sexual, de idade ou quaisquer
outras formas de discriminação. Sendo assim, a homofobia fere os direitos
básicos e fundamentais da pessoa humana.
As
consequências da prática homofóbica2 são demasiadamente desastrosas tanto para aqueles que sofrem diretamente
com tal preconceito como para os familiares em geral e, acima de tudo, para a
sociedade, que perde muito de seu potencial democrático ao agir com
intolerância e desrespeito às vivências e experiências alheias.
No uso de
filmes como material didático, é interessante possibilitar aos espectadores
observar a homofobia sob a perspectiva daqueles que sofrem diretamente as
consequências da discriminação. Uma questão importante para ser analisada é a
amplitude da homofobia, cujos efeitos vão desde a violência simbólica, que
conforma modos de ser e de se comportar no mundo, restringindo as possibilidades de existência, até a
violência física extrema, que destrói e elimina pessoas não conformadas à regra heteronormativa.
Outro ponto que vale a pena ser discutido através
de filmes ou da literatura é que a violência homofóbica é diretamente
proporcional ao valor moral que supostamente
é infringido. Os crimes homofóbicos tendem a ser mais graves ou mais
violentos tanto mais o sujeito atacado tenha engendrado uma oposição entre a
identidade de gênero e seu corpo biológico. Os gays que dissimulam ou disfarçam a sua homossexualidade são socialmente mais
aceitos do que aqueles que se aproximam de uma identidade de gênero oposta à
sua natureza biológica. Descortinar a hipocrisia da sociedade pode ser um
caminho interessante para orientar os debates. Em algumas situações, os
próprios professores e diretores de escolas veem como afronta, má educação e
desrespeito o rapaz que vai vestido de mulher. É claro que deve haver acordos
sobre o comportamento socialmente
aceito, e o que pode ou não na escola deve ser respeitado. Mas as regras
precisam valer para todos e não podem fazer diferenças de gênero, classe ou cor.
2 Homofobia que ultimamente tem alcançado maior visibilidade no âmbito escolar
devido à maior discussão e ao
entendimento do conceito de bullying que, resumidamente falando, seriam todos aqueles atos de origem física e/ou psicológica que agridem crianças
e jovens que não se enquadram
ao padrão considerado tácito pelos demais
colegas.
Outro ponto
a ser trabalhado e discutido nas escolas, e de preferência a partir de filmes,
é o sofrimento pessoal de constituir-se enquanto sujeito e assumir
integralmente sua personalidade e seu desejo. Vale reforçar a importância da escola e de outras instituições de
formação que podem contribuir no desenvolvimento do aluno; esferas que possam
auxiliar a dar apoio emocional e social aos jovens que estão na fase de
experimentações sexuais. Filmes, literatura, obras de arte, biografias e até
músicas podem ser pontos de partida para discussões sobre sexualidade e gênero
nas escolas.
Na verdade, na adolescência todos
passamos por transformações corporais que devem ser discutidas nas escolas, não apenas em
termos biológicos, mas em termos
sociais, apontando que todos passam por dificuldades e desafios na constituição da própria personalidade e da própria
identidade social. Esse
processo para todos exige certa dose de coragem para conhecer, aceitar e
usufruir as mudanças corporais, emocionais e sociais. De fato, entrar
no mundo da vida adulta é
desafiante para todos e exige coragem de todos. É necessário reverter
a lógica de uma fraqueza moral na assunção da
homossexualidade e vê-la dentro do âmbito da sexualidade humana.
Independentemente de o sujeito ser hétero ou homossexual, ele/ela deverá se
tornar uma pessoa de bem, trabalhador/trabalhadora e cidadão/cidadã. Seja qual for a prática
ou a identidade sexual, ele/ela deverá respeitar os parceiros e
aprender que a liberdade de um termina quando começa a liberdade
do outro. É importante retirar
a discussão do âmbito da escolha
e colocá-la no âmbito dos
direitos humanos e do respeito ao outro e, portanto, comuns a todos os estudantes em formação, independentemente da classe,
da cor e da identidade sexual.
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Fonte:https://www.seer.ufal.br/index.php/latitude/article/view/1065
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