A MULHER NA ÍNDIA: ENTREVISTA DE UMA GAROTA E DE BRASILEIRA CASADA COM INDIANO NO PAÍS APONTADO COMO UM DOS MAIS MACHISTAS DO MUNDO

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A mulher na Índia: a vida de uma garota comum no país apontado como um dos mais machistas do mundo

“Ainda me sinto ameaçada quando a questão é segurança”, diz Naima Talan*. Em depoimento , a jovem de 26 anos, integrante da classe média indiana, conta como é sua rotina e o que é verdade e mentira sobre seu país.

Numa sociedade tradicionalmente patriarcal, o machismo pode estar tão entranhado na cultura que, muitas vezes, o pior dos horrores parece naturalizado para alguns homens. Se não for isso, o que mais explica o novo estupro coletivo que, segundo a polícia indiana, aconteceu novamente no país no último dia 11? Nem mesmo a repercussão mundial da morte, em dezembro do ano passado, da estudante de medicina que foi espancada, estuprada e jogada para fora de um ônibus em movimento em Délhi foi suficiente para frear a maldade desses homens. Dessa vez o crime teria ocorrido no estado de Punjab, novamente com uma moça dentro de um ônibus público.
A questão do machismo e da violência contra a mulher na Índia, país muitas vezes procurado por ocidentais em busca de transformações espirituais, virou assunto nos principais jornais do mundo após os crimes. No último domingo, o jornal “O Estado de S. Paulo” publicou sobre o assunto o artigo “Entre o coice e o estigma”, da antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília. Segundo ela, a lei indiana que proíbe a divulgação do nome da vítima de estupro (o nome da estudante Jyoti Singh Pandey só foi divulgado por seu pai dias após a morte dela) revela uma tênue fronteira entre respeitar a dor das mulheres e, na verdade, proteger a honra dos homens da família dela. No texto, a antropóloga também atenta que a repercussão internacional do caso mostra o quanto as mídias indianas e as ocidentais têm um enquadramento diferente sobre o caso. Trata-se, segundo ela, de um choque entre valores locais e uma ordem global que se anuncia como humanitária.
Para tentar atenuar os estigmas que corremos o risco de criar sobre o Oriente, ora como o paraíso da redenção espiritual, ora como o inferno para as mulheres, enviei um email para uma garota indiana com quem costumava trocar mensagens no tempo em que ela trabalhava como contato de uma agência estrangeira de reportagens. Naima Talan tem 26 anos, namora há mais de três, vive com os pais e trabalha com comunicação. No depoimento que se lê abaixo, ela conta como é a vida de uma garota comum de classe média em seu país e o que é verdade e mentira sobre a Índia.

O TRABALHO E A VIDA EM FAMÍLIA

“Tenho 26 anos, namoro e trabalho no departamento de comunicação de uma empresa de tecnologia da informação. Também faço ilustração para livros infantis. Antes disso, morei sozinha por cinco anos, faz dois voltei para a casa dos meus pais. Tenho um namorado há três anos que vive na mesma cidade que eu. Moro com a minha família e tanto meu pai como a minha mãe trabalham como gerentes numa fábrica de portas de madeira. Apesar de ter uma família moderna, não durmo com meu namorado na casa dos meus pais. Isso não faz parte dos nossos costumes. Com raras exceções, as famílias indianas não concebem a ideia de um casal vivendo junto antes do casamento.”

JÁ FOI PIOR PARA AS MULHERES

”Concordo que em termos de segurança e igualdade de gêneros a Índia não é o melhor lugar para ser mulher. Vivemos em uma sociedade dominada pelos homens onde a maioria das famílias acredita que é melhor ter filhos homens, pois sabem que as mulheres são reprimidas. A Índia, em sua maioria, é formada por uma população rural onde predomina a falta de educação formal e essa é a primeira razão para a violência doméstica, o infanticídio e o casamento de crianças. Mesmo assim, ainda acredito que se faz uma ideia errada do país. Nos últimos anos, reformas têm sido feitas e, pelo menos nas cidades, a Índia está mudando para melhor. Espero que isso alcance a população do campo em breve. Venho de uma famíla moderna, completei minha educação e, nos diversos trabalho pelos quais, passei nunca enfrentei discriminação por ser mulher. Portanto, acredito que a Índia merece crédito por aumentar as oportunidades para as mulheres no mercado de trabalho, garantir igualdade perante a lei, direito de voto e etc.”

A ÍNDIA AINDA É ANTIGA...

”Existem dois lados da Índia – um liberal, moderno e outro tradicional. Na Índia tradicional, uma garota comum de classe média não costuma completar os estudos e casa-se com um homem escolhido por sua família. Ela não costuma ser ambiciosa e foi educada para acreditar que seu papel na sociedade é o de dona-de-casa, mãe e esposa. Nesse tipo de criação, as meninas começam a ajudar a mãe com as tarefas domésticas muito cedo e assim assumem responsabilidades antes do que supostamente deveriam assumir. Ela se torna mãe muito jovem também e passa o resto da vida cuidando da casa. No jantar, por exemplo, ela serve primeiro o marido e os filhos e só come depois que eles terminarem. Certamente, ela vive com os sogros. Mesmo assim, existem poucas famílias de classe média (a maioria das famílias que vivem na Índia rural são pobres).
... MAS TAMBÉM É UM PAÍS MODERNO

”Essa situação é diferente na Índia moderna. As mulheres de classe média estão emprestando dinheiro para pagar os estudos, seja na Índia ou em um país estrangeiro. Depois, elas trabalham e vivem independentes nas grandes cidades. Carreira é a prioridade. Essas mulheres perceberam a importância de serem financeiramente independente depois de ver a situação das mulheres mais velhas da família delas. Em suma, essa nova geração é a cara da Índia que está mudando.
De todo jeito, ainda me sinto ameaçada por ser mulher quando a questão é segurança. Os homens ainda são muito críticos em relação ao que a mulher veste e ouvir provocações na rua ainda é supercomum. Quando uma mulher é assediada nas ruas, ninguém vem para ajudá-la, então é preciso cuidar de si. Por isso, andamos com um amigo homem ou o namorado depois do pôr-do-sol. No entanto, o que aconteceu recentemente em Délhi provou que mesmo tendo um homem conosco não significa que não corremos riscos. Os homens não gostam da maneira como a nova geração de mulheres indianas está mudando com os novos tempos e culpam a influência da cultura ocidental por isso. No mundo corporativo, a maioria s concorda que não gosta de se reportar a uma mulher. Na cultura indiana, a ideia de que o homem é superior é forte. Mas isso também está mudando, temos um crescimento gradual de mulheres em cargos altos”.

UM BOM DOTE E UMA GAROTA CASEIRA PARA CASAR

”O típico homem indiano ainda quer se casar com uma “garota caseira” - aquela que não vai a festas, para de trabalhar quando se casa e tem como prioridade cuidar da casa e das crianças. Na maioria das casas, os homens jamais ajudam nas tarefas domésticas. Claro que esse estereótipo está mudando na Índia urbana graças à globalização. No entanto, como muitos casamentos continuam sendo arranjados, quando a família do homem procura uma noiva, essas são as qualidades que querem ver na nova mulher que vai entrar na família. Portanto, se você é uma garota moderna que gosta de ir à festas e usar minissaia, às vezes se sente como se estivesse fazendo algo errado. Estamos presos em uma era de transição, em que as pessoas lentamente estão tornando-se mais abertas.
Nos últimos anos o número de mulheres indianas tem aumentado – creio que são 900 mulheres para cada mil homens (uma das graves consequências do machismo na Índia é que muitas famílias rejeitam a ideia de criarem meninas, expondo-as a situações de riscos como trabalho infantil ou escravidão sexual, o que resulta facilmente na morte delas). No entanto, a Índia rural representa uma boa parte do país e, entre essa população, a crença de que ter uma filha é desvantagem ainda é forte. Na minha opinião isso acontece porque, quando uma moça vai se casar, a família deve pagar um bom dote e deve comprar carro, joias e outras coisas caras. Só se consegue um bom casamento para uma menina se a família tiver dinheiro para tudo isso. Os dotes também existem na parte urbana do país e costuma ser exorbitante, podendo incluir até mesmo o modelo mais novo da Mercedes ou da BMW. Com raras exceções, a família da noiva paga sozinha por toda a festa de casamento. Assim, ter uma filha e garantir que ela se case e se estabeleça é uma responsabilidade pesada para a família. No meu caso, não é um costume na minha etnia a prática do pagamento de dote. Outra questão é que apenas os homens podem assumir um negócio de família – caso não seja possível, é o marido dela quem assume. Então, sim, em uma sociedade onde os homens são considerados superiores, há muitas razões pelas quais as famílias querem filhos e não filhas. Há tentativas de mudar isso - ONGs e o Governo estão promovendo a campanha “Salvem as meninas”.
AS CASTAS AINDA EXISTEM, MAS...

“O sistema de castas ainda faz parte da Índia rural, diferente da Índia urbana onde as pessoas se misturam livremente, exceto, claro, quando se trata de casamento. Como vivo na parte urbana, nunca ouvi falar de nenhum caso em que alguém tenha sido prejudicado por causa da casta qual pertence. Eu não pertenço a nenhuma casta. Pertenço a um grupo étnico chamado kodavas, que tem como religião o hinduísmo. Essa é a questão que poucos sabem: a Índia urbana consiste em diferentes grupos étnicos e religiosos, não há muitas castas. Cada estado indiano fala sua própria língua e tem seus próprios dialetos e tradições. Os kodovas falam uma língua chamada kodava takk, que não tem escrita e é diferente da língua que a maioria das pessoas da minha cidade fala. O meu namorado pertence a um grupo étnico diferente, os brahmin.
Nos questionários de censo demográfico do governo, ainda respondemos sobre a nossa casta. Mas essa, na verdade, é uma tentativa do governo de diminuir a desigualdade entre as castas historicamente consideradas inferiores e superiores, por meio de medidas afirmativas em institutos de educação, empregos públicos e no mercado de trabalho. A questão das castas na zona rural é algo que não vai mudar tão cedo, embora eu, sinceramente, torça por isso.”
*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.

Fonte:http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/01/mulher-na-india-vida-de-uma-garota-comum-no-pais-apontado-como-um-dos-mais-machistas-do-mundo.html

Brasileira casada com indiano fala de discriminação da mulher no país

 A jornalista Florência Costa mudou-se para a Índia há três anos, para escrever reportagens sobre o país. Apaixonou-se por um indiano e casou em uma cerimônia budista. Ela conta como é fazer parte de uma sociedade em que matar baratas é imoral, o machismo impera e que vive em vários séculos ao mesmo tempo

            
AS MULHERES INDIANAS SOFREM DISCRIMINAÇÃO (Foto: Getty Images)
AS MULHERES INDIANAS SOFREM DISCRIMINAÇÃO (Foto: Getty Images)
“A rivalidade entre sogras e noras na Índia é séria, pesada. Um dos tipos de violência feminina comum é o assassinato planejado por sogras/maridos “à beira do fogão”. A sogra diz que vai ensinar a nora a fazer um prato, mas joga querosene e ateia fogo nela. Depois tenta caracterizar o crime como acidente de cozinha. Elas costumam planejar os assassinatos com os filhos, que, viúvos, podem sair em busca de outra noiva e ganhar um novo dote. O crime, conhecido como “acidente no fogão de querosene”, é mais comum nos casamentos arranjados, nos quais são oferecidos dotes aos pretendentes. Os casos acontecem aos montes e acabam na polícia. Muitas vezes é difícil comprovar o assassinato. Mesmo sabendo disso, me casei com um indiano — por amor, claro, mesmo porque minha família não ofereceria nada a ele por ter me escolhido. Por sorte, minha sogra não fala inglês nem pode me ensinar a cozinha típica local. Mas, por via das dúvidas, temos forno de micro-ondas e fogão elétrico lá em casa.
Conheci meu amor há quase três anos, pouco depois de chegar à Índia. Queria ter mais contato com jornalistas locais porque vim com a missão de escrever sobre o país em jornais brasileiros. Eles poderiam me dar boas dicas, informações e sugestões de reportagens. Uma amiga brasileira me deu o contato de um editor do maior jornal do país. Liguei para ele e combinamos de tomar um café. Foi paixão à primeira vista. Logo que começamos a conversar, percebemos que tínhamos coisas em comum: posições políticas, disposição para viagens, os mesmos gostos para livros e filmes, enfim, uma formação cultural próxima, apesar da distância dos nossos países. Quando ele me contou que uma das suas especialidades era a cobertura do Dalai Lama, fiquei extasiada. Sempre simpatizei com o budismo e esse era justamente um dos motivos pelos quais fui para a Índia. Ele me deu vários contatos para futuras matérias e prometeu ajudar no que precisasse.
Mas, logo nesse primeiro encontro, vivi uma saia justa cultural, por causa do sistema de castas. Um pouco antes de ir embora, ele me deu um livro explicativo sobre o assunto escrito por um “dalit” (termo que significa oprimidos, os indianos que são chamados de intocáveis, situados no mais baixo patamar da pirâmide de castas do hinduísmo, geralmente voltados a trabalhos servis). Shobhan, esse é o nome do meu marido, ganhou mais um ponto positivo. Eu jamais conseguiria ser sequer amiga de alguém que apoiasse esse sistema que abomino. Nos despedimos à indiana: aperto de mãos, nada de beijinhos. Trocamos e-mails e combinamos de nos falar quando ele voltasse de uma viagem que faria à Inglaterra. Fui embora para casa repleta de curiosidade. Como todos os estrangeiros na Índia, queria saber como funcionava o sistema de castas. Também tinha vontade de descobrir à qual ele pertencia. Mas também sabia que pegava mal perguntar a casta de um indiano e resolvi não ser indelicada. Se fosse indiana, descobriria a origem dele pelo sobrenome. Mas Saxena, seu último nome, não me dizia nada.
Quando Shobhan voltou da viagem, escreveu-me. Se oferecia para me ajudar a conhecer a cidade. Aceitei. Fomos a um restaurante, conversamos sobre vários assuntos: o que estava acontecendo no mundo, na Índia. Percebi no olhar dele que tinha interesse por mim, mas ele sequer pegou na minha mão. Como a maioria dos indianos, Shobhan é tímido. Também percebi que não deveria dar o primeiro passo. Essa é uma tarefa dos homens. Nos despedimos com um aperto de mãos mais uma vez. Se fosse no Brasil, com certeza teria rolado uns beijinhos. Mas estava adorando aquela paquera. Combinamos de nos ver novamente.
A certeza de que ele estava interessado aumentava. Sempre estava disposto a me encontrar, inclusive nos sábados à noite. Íamos ao cinema, restaurantes, feiras de artesanato, exposições. Sempre como amigos. Ele me perguntava o que eu achava do país dele. Mas, eu não conseguia contar o choque. Só falava do lado positivo, que de fato existia: o privilégio de conhecer uma cultura milenar tão diferente da minha, poder escrever sobre um dos países que despontavam como potência emergente.
Eu sabia que na Índia as amizades entre homens e mulheres são raras. Shobhan era meu primeiro amigo em seis meses. Também estava ciente de que as mulheres ocidentais têm fama de “fáceis” e não são muito respeitadas. Mas não dei a menor bola e não hesitei em continuar saindo com ele. Esse é um preconceito comum entre os homens do povo, que não é o caso de Shobhan. Ele é mais cabeça aberta do que a média dos indianos.
Depois de um mês nessa lenga-lenga, ele me convidou para passar alguns dias em um resort, em uma praia, perto de Mumbai. Disse que tinha chamado amigos e que faríamos um piquenique. Mas quando chegamos lá, ninguém apareceu. Ele escolheu um quarto com duas camas de solteiro para nós. Até hoje ele jura — sempre com um sorrisinho maldoso — que os colegas desistiram na última hora. Nos acomodamos, fomos tomar uma cervejinha e comer um peixe frito. Minha passagem de volta para o Brasil estava marcada e começamos a falar de planos. Ele me pediu para adiar a viagem. Queria me mostrar mais lugares na Índia, me levar para conhecer o Dalai. Foi seu jeito tímido de me pedir em namoro. Percebi que tudo aquilo estava sendo difícil para ele. Respondi que sim, mudaria a data do voo. Estávamos muito felizes.
Nosso primeiro beijo só aconteceu à noite, quando fomos para o quarto dormir juntos. Ele foi muito carinhoso, mexia no meu cabelo, passava a mão no meu rosto. Namorar na Índia é um exercício complicado. Os casais quase não se beijam em público sob o risco de serem presos por atentado ao pudor. Mesmo com o namoro oficializado, a gente só se beijava em casa ou em bares moderninhos.Não dormimos mais juntos durante semanas. Ele até me chamava para passar a noite na casa dele, mas percebia o desconforto na sua voz. Acho que fazia isso porque sabia que eu era ocidental. Na Índia, mesmo com uma população enorme, todo mundo comenta quando uma mulher dorme na casa de um homem com quem não é casada. Por isso, não ficava na casa de Shobhan nem de madrugada. Também não o convidava para dormir na minha. Ele ficaria constrangido.
Só consegui perguntar à qual casta ele pertencia depois de meses de namoro. Sua casta correspondia aos guerreiros, governantes, antigos reis. Mas ele, que sempre criticou o casteísmo, se converteu ao budismo como forma de protesto. O budismo não aceita a discriminação de castas.
Como todo bom indiano, Shobhan sempre me perguntava se casaria com ele. Achava que ele estava brincando e respondia, “sim”. Minha passagem de volta para o Brasil tinha sido apenas adiada, mas ainda existia. Eu estava dividida. Ficava angustiada ao pensar que não ficaria mais com Shobhan, mas, imagine, sentia saudade até do conforto e da organização do trânsito de São Paulo, de falar a minha língua. Na Índia, os carros, motocicletas, motonetas e vacas ocupam as ruas sem nenhuma lógica. Não existem leis de trânsito, semáforos, muito menos contramão. Impera a lei do mais barulhento. Aqui, as pessoas buzinam para sinalizar que estão atrás de outro automóvel. Os ônibus e caminhões têm placas nas traseiras que dizem: “Buzine, por favor”. É um aviso de que ele não pode dar ré a qualquer momento. Acho que o espelho retrovisor é um enfeite. E deve ser por isso que a meditação nasceu aqui!
Marquei minha passagem de volta. Dias depois, ele me fez uma surpresa. Disse que iria pedir a um monge budista tibetano para nos casar. Fiquei completamente estupefata. Disse sim na hora, mesmo com frio na barriga. Sabia que estava sendo impulsiva, mal o conhecia, mas tinha o pressentimento de que daria certo. Além do mais, a maioria das decisões importantes da minha vida tinha sido tomada dessa forma.
Contei para a minha família e amigos por e-mail a grande novidade e depois liguei para a minha mãe. Ninguém acreditava. Disse que estava apaixonada e todos me apoiaram na decisão. Lamentaram não poder ir à cerimônia. A família dele ficou muito feliz, mesmo eu sendo estrangeira. Afinal, ele iria cumprir a missão social mais importante da vida: casar. Sem ele saber, seus pais já haviam até colocado anúncios no jornal, na seção de classificados de casamento, divididos por castas, o que é comum por aqui, mesmo para os homens. Antes de me conhecer, ele já havia passado pela constrangedora situação de ir a vários encontros às escuras. O casamento arranjado ainda é a principal forma de união entre os indianos. O pagamento do dote — aquele que as sogras tanto adoram — também é comum. A gente brinca com esses hábitos arcaicos que ainda existem na Índia, um país que vive em vários séculos ao mesmo tempo. Felizmente, Shobhan vive no século 21.
Nos casamos duas semanas antes de eu voltar para o Brasil. A cerimônia budista foi simples e durou 40 minutos. Sentamos em almofadas diante da mesa do monge, que falou o tempo todo em tibetano. Não entendi nada. Depois Shobhan me disse que o sermão versava sobre Buda e seu significado. A ceia foi vegetariana, é claro. O cozinheiro era do Butão e preparou um menu delicado, bem menos apimentado que o indiano, com o qual meu estômago ainda não fez as pazes.
Depois de casada, tive a minha primeira experiência como patroa na Índia. Nunca tinha tido uma empregada doméstica, até porque não conseguia me comunicar com elas em híndi. Por essa experiência, descobri que o sistema de castas ainda está enraizado nas cidades. A moça fazia a faxina do apartamento, mas ignorava o banheiro. Quando perguntei a Shobhan por que ele não pedira a ela que limpasse também o banheiro, ele me olhou espantado, com um olhar que me fez sentir uma assassina: “Você queria que eu pedisse isso a ela? Nunca, não poderia!”. E me explicou que a moça não pertencia à casta de limpar o banheiro. As famílias costumam ter vários empregados, um para cada tarefa.
Cinco meses depois do casamento nos mudamos para a capital, Nova Délhi, onde vivemos até hoje. É o centro dos correspondentes estrangeiros por ser a sede do governo central e das embaixadas. Shobhan pediu transferência dentro do mesmo jornal para me acompanhar. Em Délhi, o assédio dos homens é pior do que em Mumbai. Apesar de tímidos, eles são extremamente machistas. São mais agressivos e menos acostumados à presença das mulheres em ambientes dominados por homens. Não se veem muitas mulheres nas ruas, trabalhando em lojas, vendendo produtos. Tradicionalmente, a mulher ficava em casa e o homem saía para trabalhar. Eles dominam até os salões de cabeleireiros. Aqui, pedicures e manicures são homens.
Nova Délhi é uma das cidades com mais alto índice de estupro e agressões a mulheres na Índia. Os homens tentam dar passadinhas de mãos nas pernas e nos seios —uma obsessão dos indianos —, especialmente em ambientes com muita gente. Por isso, Shobhan queria me acompanhar na rua, pedia para eu não andar sozinha de rickshaw (aquele triciclo motorizado muito comum na Ásia). Casos de motoristas que levam mulheres para lugares ermos e as estupram são comuns. Levei várias passadas de mão até aprender que não se deve encarar os homens na rua, mesmo com cara feia. O ideal é desviar o olhar e proteger o peito cruzando os braços, principalmente em aglomerações. Hoje, ando com um spray de pimenta para jogar nos olhos dos eventuais agressores.
Alugamos um apartamento no terceiro andar com um imenso quintal de frente para um parque. É um lugar privilegiado. O único porém são as visitas inesperadas dos macacos. Shobhan sempre liga para me lembrar de não deixar a porta de casa aberta enquanto estou na espreguiçadeira do quintal pegando um solzinho: os macacos costumam entrar nas casas e roubar comida e objetos de valor, como celulares. Na minha, eles ainda não conseguiram furtar nada.
A família de Shobhan não foi ao nosso casamento. Sua irmã passou por uma cirurgia grave e de emergência no mesmo dia. Ficaram chateados, nos ligaram, pediram desculpas. Entendi a situação. Mas descobri depois que Shobhan estava magoado e não queria recebê-los na nossa casa. Com essa demora em conhecer a família, já estava achando que eles não tinham me aceitado. O mito da sogra assassina só aumentava e até virou piada entre meus amigos e familiares.
Sete meses depois do casamento, os pais dele vieram nos visitar, quando a raiva já havia passado. Minha sogra me surpreendeu e foi muito doce. Me abraçava e me beijava muito, o que ela não faz nem com os filhos, porque na Índia eles só agem assim quando as crianças são bem pequenas. Apesar de não falar inglês, entende. Sorria enquanto eu falava. Meu sogro também foi educadíssimo, com um inglês maravilhoso, inteligente e bem informado. Foi um alívio. Tive que mandar um relatório imenso e detalhado para a minha mãe, que, no fundo, estava morrendo de medo de eu ter entrado em uma roubada.
Só depois de casada me senti à vontade para contar a ele sobre meu medo de andar de táxi. Logo que cheguei, uma ratazana resolveu subir no colo de um amigo dentro do táxi. Como fui perceber depois em vários episódios macabros, os indianos não costumam matar esses bichos para não ter carma ruim na próxima vida (nora pode, mas bicho...). Ou seja, não é só a vaca que tem vidão na Índia. Os ratos, baratas e aranhas que aparecem nas casas e dentro dos carros são apenas expulsos, sem danos a sua integridade física. Esse foi um capítulo à parte no meu casamento. No início da convivência a dois, Shobhan se recusava a matar baratas — que eu odeio com todo o coração. Mas, felizmente, o meu ódio prevaleceu e ele entendeu que as baratas não têm espaço na nossa vida. Nem nessa nem em outra encarnação: chinelo e spray nelas! (Só que tive que dar o braço a torcer quando uma bichinha se aproximou do meu pé durante uma entrevista do Dalai Lama. Estava na primeira fileira, pertinho do Dalai. Shobhan, do meu lado, viu meu pavor e me advertiu: se matasse a baratinha, perderia todas as fontes de informação budistas presentes, além da possibilidade de entrevistar o líder budista. Em nome do jornalismo, não matei, mas assoprei a bicha, que felizmente foi embora.)
Não, não foi uma roubada. Nem o casamento, nem o marido, nem a sogra, nem o restante da família. Foi um grande presente que a Índia me deu. Mas morar aqui continua sendo um desafio, confesso. Quanto às ratazanas, já consigo até encará-las perto de mim, desde que não venham para o meu colo, é claro. Prefiro elas, as baratas, as aranhas e os macacos ladrões aos homens machistas e inconvenientes de Délhi.”

Fonte:http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/01/brasileira-que-se-casou-com-indiano-fala-sobre-discriminacao-da-mulher-no-paiss.html

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