PRECISAMOS FALAR SOBRE PERVERSÃO - A MULHER COMO OBJETO DE DESEJO E PRAZER DO HOMEM TRAVESTIDO DE ADULTO,MAS REGIDO POR PULSÃO INFANTIL

PRECISAMOS FALAR SOBRE PERVERSÃO

Susana Muszkat
O caso recente do homem que ejaculou no pescoço de uma mulher num ônibus em São Paulo e foi liberado pelo juiz sob a alegação de que “não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco do ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação” (O Estado de S. Paulo, 1/9/17), disparou uma enxurrada de manifestações. Muitas de indignação com a sentença. Muitas outras endossando a decisão do juiz, justificando-a como absolutamente técnica, ao sentenciar o acontecido como uma “contravenção penal por ato obsceno”, ou ainda, na mesma linha, classificando-o como, o mais do que ultrapassado, “atentado ao pudor”.
Noticia-se, então, inúmeros outros casos de natureza semelhante. Na mesma semana, os jornais haviam noticiado o índice alarmante de estupros coletivos praticados em mulheres e meninas no Nordeste, bem como, o também revoltante número de abusos praticados diariamente no país, principalmente contra meninas.   
No caso que aqui tratamos, a moça do ônibus, logo após o ocorrido, foi colocada na mesma sala com seu agressor, num Juizado Especial Criminal, e submetida a uma série de perguntas altamente constrangedoras como: ‘você de fato viu o pênis do homem? ’ ou ‘ ele chegou a encostar o pênis em você? ’, cujo intuito alegado, era o de verificar se se poderia ou não caracterizar o ocorrido como violência de fato!
Ou seja, uma sequência de violências tiveram início dentro do ônibus e prosseguiram no âmbito do poder público, justamente aquele encarregado de zelar pela proteção e segurança do cidadão. Mas o que explica que haja tamanha dificuldade em reconhecer e caracterizar a violência contra a mulher como tal, mesmo quando praticada de maneira tão explícita? O que justifica que convivamos com uma condição endêmica de tais práticas? Penso que ambas perguntas apontam para um sintoma social.
Proponho aqui minha leitura sobre este fenômeno: o primeiro objeto de amor do bebê é, via de regra, a mãe. Mas o que chamamos de amor nesta fase da vida não é exatamente o tipo de ligação de amor romântico que conhecemos quando nos tornamos adultos. O bebezinho não percebe que sua mãe é uma outra pessoa, diferente dele. Sente, isto sim, que a mãe é um objeto de sua propriedade, uma extensão dele e que está lá onde ele o deseja, como já teorizado por um psicanalista de bebês e crianças inglês chamado Winnicott.
A mãe suficientemente boa, expressão cunhada pelo autor, se presta a ser este objeto que atende às demandas do bebê. Este é um estado de ilusão necessária na vida precoce do bebê. À medida em que cresce, se tudo se der de maneira satisfatória em seu desenvolvimento, a criança e depois o adulto, deve ser capaz de entender que aquela pessoa, sua mãe, é um sujeito diferente dele, com desejos e mente próprios, distintos dos dele. Entendendo isso, ele deverá então, ser capaz de tolerar a frustração de abdicar da mãe como um objeto que lhe pertence e escolher uma outra pessoa, um/a parceiro/a, com quem poderá, então, ter uma relação de trocas e parceria amorosa. A relação amorosa não pode ser uma relação de posse, uma vez que o outro não é um objeto e sim um sujeito.
Então, se na infância precoce de todo ser humano, é natural e desejável que a mãe se preste a ser objeto do desejo do bebê, na vida adulta, a perpetuação deste tipo de comportamento  configura perversão. Perversão é o ato de transformar uma outra pessoa, com uma singularidade própria, em objeto de uso de prazer pessoal, sem o consentimento desta.  Ao fazer isso, a pessoa é destituída de sua condição de sujeito e tratada como objeto. Esse é exatamente o caso de todos estes atos em que mulheres, meninas – ou qualquer pessoa em desigualdade de poderes -, são colocadas em situação de objeto, a serviço do desejo exclusivo de alguém, sem que sejam consideradas como um sujeito com vontades e direitos próprios.
O que isso tudo revela sobre a sentença do juiz no caso do ônibus?  Do meu ponto de vista revela que, quando um juiz julga um ato perverso como um ato menor, ele não está regido pelas leis que garantem a justiça e a ordem social, mas sim, pelas leis do infantil, que, quando atuadas pelo adulto, é perversa. Assim, ele é o ator que reproduz um sistema social.  
Outros dois elementos dão sustentação à manutenção deste código perverso, de violência endêmica contra mulheres. Um deles é o modelo da sociedade patriarcal que autoriza o homem a funcionar regido pela pulsão infantil, embora travestido de adulto. Ou seja, autoriza o homem adulto a acreditar que a mulher – representante da mãe – lhe pertence como objeto. Deste modo, o juiz no lugar de suposto saber, colabora na manutenção das crenças que regem as práticas entre homens e mulheres.
Outro elemento diz respeito à brutal defasagem dos lugares atribuídos a homens e mulheres no imaginário cultural. Este não corresponde às práticas sociais de fato. Estatísticas revelam que metade da força de trabalho do país é composta por mulheres, sendo ainda as mulheres, responsáveis exclusivas pelo sustento de quase metade das famílias brasileiras. O lugar infantilizado e fragilizado tantas vezes atribuído à mulher, não se verifica na sociedade contemporânea. Esses elementos associados, a meu ver, garantem a condição endêmica de violência no país.
Como nota final, vale dizer que na perversão, impera a vivência do indivíduo de que seu desejo e seu gozo pessoal estejam acima de tudo e sejam realizados independentemente dos possíveis danos ao próximo. Esse modelo, também endêmico no país como temos tristemente assistido nos últimos tempos, talvez nos dê pistas para entender o porquê da impossibilidade em verdadeiramente lutarmos para instaurar um modelo de igualdade e respeito entre todas as pessoas, a despeito do gênero.

Susana Muszkat é psicanalista e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. E-mail: sumuszkat@gmail.com.

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